Da resiliência do afeto

Não, não é tarefa fácil. De fato, é extremamente difícil, resiliência é um processo e nele há riscos de várias quedas: em um dia a compreensão está ali, no dia seguinte pode estar somente o ódio egocêntrico. No entanto, é aí mesmo em que reside a resiliência do afeto: resistir a toda montanha russa emocional em que entramos quando ocorre uma briga ou um desentendimento de maior ordem. Para tanto, naturalmente, é necessário entender que é absolutamente natural sucumbirmos a dores, dúvidas, incertezas, mágoas e momentos de fúria e saudade, justamente pelo exercício frustrado do afeto. Mas que é só isso. É o afeto se debatendo sobre si mesmo. É o afeto doente. E precisamos ainda entender que não é a outra pessoa que tem de nos retirar deste lugar, a pessoa que supostamente te atirou nessa área sombria. Nós é que devemos fazer nosso próprio resgate. Nós é que devemos superar todas as dores e mágoas, olhar para o embate como fato ocorrido e entender que é impossível ter domínio total sobre o que aconteceu. E é fundamental não nos esquecermos do óbvio: de que não somos oniscientes. Não podemos saber o que se passou ou que se passa com a outra pessoa. E é isso, cada pessoa age como escolhe ou consegue agir. Talvez se tenha decidido deliberadamente por ferir, talvez não. E qualquer uma dessas ações está dentro do que a pessoa consegue oferecer ao mundo. Dentro do que ela pode e consegue ser. Talvez a grande ferida – seja de que ordem for – esteja na outra pessoa. Não há como saber. E talvez seja anterior a nós. Podemos ter tocado em um ponto de fragilidade ou cruzado uma linha que não percebemos o quanto ia ferir a outra pessoa.

Talvez, para imensa tristeza, dor e desespero, a outra pessoa tenha de fato de ir embora. Talvez temporariamente, talvez de uma vez por todas. Sim, dói demais. É inaceitável até. Mas não é algo que se possa mudar e, principalmente, não precisa ser considerada responsabilidade sua. Como saber por que a outra pessoa foi embora realmente se havia afeto? Quando não há, é fácil. Quando está tudo muito ruim, também. Mas quando está tudo bom e leve e com tanto afeto que quase palpável, como explicar? Como aceitar? Como entender? Como lidar com o rompimento repentino por conta de um ou alguns desencontros? Não há fórmula. Não há remédio. Não há antídoto. É suportar toda a confusão do golpe violento. É aguentar todas as dores que virão a cada dia de lembrança e espera. É lidar com todos os sentimentos controversos sem se deixar derrotar por eles. É se concentrar na certeza de que com o tempo tudo se acalma e pensamos e sentimos tudo de forma mais lúcida. Se a pessoa rompeu, é porque precisou romper. Não importa se de forma abrupta, agressiva ou qual seja, se a decisão foi pelo rompimento é porque a outra pessoa considerou que esta era a melhor escolha naquele momento. A melhor para a outra pessoa, sim, mas quem disse que não foi também por você ou por vocês? O que importa mesmo é: que tipo de afeto será o meu se eu colocar a saudade que sinto acima da necessidade da outra pessoa?

E sim, por mais amargo que seja, nada pode garantir que o afeto voltará para o lugar de antes. Talvez quanto mais tempo passe, com a distância, mas ele se dilua em outra coisa. Mas também nada, nada pode garantir que não voltará ainda mais forte, mais firme, mais enraizado e alastrado, cheio de novas nuances, com mais flexibilidade e maior compreensão – adquirida na resiliência do suportar e transformar. Não é fácil. Pode ser demorado. Tudo pode se perder. Mas se há afeto de fato, se os afetos de duas pessoas se tocaram, se atravessaram, se havia um lugar de afeto único, em que apenas duas pessoas são cúmplices, um espaço que a apenas duas pessoas é inteligível e palpável, o afeto pode vir a se transformar no que tiver ou precisar vir a ser, mas estará ali, ele, o resiliente afeto.

Mas antes da resiliência o looping: o que levou a outra pessoa a reagir de forma exagerada, dramática, agressiva diante de uma ação sua? Por que a outra pessoa apenas não foi compreensiva? Por que não se manteve firme a seu lado? Por que não quis mais conversar? Por que foi embora? E aqui uma evidência: sempre que se pensa sobre a outra pessoa é com uma condenação implícita. Diante do rompimento, mesmo que a gente pense sobre o que levou a outra pessoa a romper, pensamos sempre do nosso lugar de dor, do nosso lugar de narcisistas, egocêntricos e autorreferentes. Por que romper comigo, o que eu fiz de tão grave? Justo agora que estávamos tão bem? Mas se nos gostávamos tanto por que razão ir embora? Alguns dias antes estava tudo tão bem, tão gostoso, foi tão maravilhoso o tempo passado junto e há apenas algumas horas, então, como a outra pessoa pode ir embora? Como pode me pegar de surpresa desta forma e me causar esta dor? Eu, meu sofrimento, minha dor, meu afeto, minhas alegrias, minhas lembranças, meu espanto, meu estarrecimento, minha tristeza, minha sensação de descarte. Tudo assim, no pronome possessivo da primeira pessoa. Mas e, então, você que tem tanto afeto, tanta consideração com a outra pessoa, tanto cuidado, o que tentou entender do sofrimento dela, da dor, do afeto, da tristeza, da sensação de ir embora, da decisão de ir, dos porquês?

A resiliência é um exercício de resistência e também de desapego. De si e das próprias verdades. É se preocupar se há mágoa em quem te magoou, é torcer para que esteja bem quem te deixou tão mal, é querer que pense lucidamente quem te causou tontura. A resiliência do afeto só é vivenciada se conseguimos ultrapassar o eu. Não é tarefa nem um pouco fácil, afinal, fomos ensinados a vida inteira e somos bombardeados todo o tempo, na quase totalidade dos espaços, a olharmos muito para o nosso próprio lado, sobre o que nos atingiu, a nossa dor. No entanto, se há afeto de fato conseguimos nos acalmar, parar de olhar para as próprias feridas, como se fossem as únicas e as piores do mundo e começamos a pensar que se a outra pessoa surtou, também nós surtamos. Que se nos agrediu, também agredimos. Mas óbvio que é sempre mais fácil olhar para a insensibilidade da outra pessoa, o que ela não considerou, o que ela não viu, do que ela não cuidou, afinal somos – todos – autocomplacentes. Com nós mesmos nossa benevolência é ilimitada. Mas e a outra pessoa? Obviamente, no processo para se chegar a resiliência, se não formos algum tipo de sociopata, temos períodos de mágoa, raiva, tristeza, choro, afinal, como não sentir mágoa ou tristeza quando somos feridos e raiva de toda a situação, da outra pessoa e até de nós mesmos? Todos os sentimentos que vêm após um desentendimento com quem se gosta estão permitidos, são naturais e acredito que é muito saudável admiti-los e vivenciá-los até que se esgotem.

Talvez chegar a este esgotamento seja o primeiro passo para chegarmos à resiliência. Ou talvez seja a resiliência que nos faça esgotá-los. Ou ainda, quem sabe, talvez seja um processo conjunto. Cada caso é único e cada pessoa vivencia tudo isso de sua própria forma e em seu próprio tempo. O que importa mesmo é chegarmos a esse momento em que apenas compreendemos, aceitamos e preservamos intacta nossa capacidade de alegria, de encantamento, de envolvimento e de afeto. E – talvez – com a mesma pessoa. A resiliência afetiva vale muito a pena. Não é tarefa fácil e nem para amadores, é exercício diário e é preciso amadurecimento, força, determinação, compromisso. E, mais que tudo, ele, a um só tempo elemento-chave da resiliência e seu maior prêmio: o afeto.

@ivonepita

15 comentários

  1. Em um mundo de tantos amores e relacionamentos idealizados, que se esperam encontrar prontos, chama a atenção um texto que fale disso associado à palavra “resiliência”. Empatia e desapego ao ego, coisas tão difíceis de fazer, mas tão necessárias.

    Maravilhoso texto, Ivone.

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  2. Eu adoro seus textos querida…e esse então!!! Muito bom, muito verdade, muito bonito!!! Você nos presenteia sempre… :)

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  3. Penso que o inaceitável, no fundo, seja a constatação de que amor nem sempre vence no final como nos ensinaram ou como alegremente acreditamos. O inaceitável, no fundo, é entender (solitos no más) que caminhar é inevitável, que será cansativo e que, sei lá, como foi mesmo que o amor perdeu? Você me inspira, moça

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    1. Mariel, este seria o amor romântico, aquele que tudo vence, o que é perfeito de uma forma totalmente idealizada, exatamente como você diz: aquele que nos ensinam. Mas creio que o inaceitável mesmo seja não vivenciar cada amor – cada afeto – do jeito que for, do jeito que pudermos e o quanto pudermos. E, francamente, não sei se o amor perde, acho mesmo que nós é que o recusamos muitas vezes, outras tantas, o amor apenas se dilui ou faz o mesmo que todos nós: nasce, vive e morre. Apenas.

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  4. Absolutamente lúcido e sensível…minha maquiagem foi se derretendo sobre minha dor como um bálsamo…e agora, sinto recobrando minhas salivas, não mais para serem desferidas no outro que ainda está partido.Mas, pra cicatrizar minhas feridas, cuidar da minha vida…. vc não tem ideia da extensão do bem que me causou e nem nos conhecemos mas, de alguma forma, me senti conectado…como podemos ainda exercitar nossa humanidade…obrigado Ivone!

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    1. Que bacana ler isso, Paulo! Muito obrigada por ter comentado e compartilhado publicamente o que o texto lhe provocou. Muito bacana mesmo e fico muito feliz tenham sido estas as suas sensações.

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  5. Vou fingir que esse direta não foi para mim.Tudo bem,ainda gosto de voce.Por favor,caso me veja na rua,faz favor
    mudar de calçada.Brygado!

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